sábado, 21 de novembro de 2020

vinte e um. onze. vinte

Em Sobral desde domingo. Só agora consegui me sentar para fazer algo de escrita. Óbvio que não escrever (nem ler) por todo esse tempo foi algo que me torturou até aqui e a voz de tortura ecoava das entranhas dos meus labirintos de autossabotagem. A adaptação ao terrível horário da primeira manobra às 4h30 da manhã que me obriga a compensar o sono nos intervalos entre as demais manobras do turno. As constantes idas ao supermercado e ao Centro para me suprir de provisões, uma vez que o pátio de manutenção fica no extremo da cidade, longe de tudo, apesar do privilégio de ter um VLT passando a poucos metros do portão. O cansaço inicial por ter escolhido musculação como atividade física em lugar do ciclismo (não tenho como arranjar uma bike aqui) que gerou diversas dores e que me causa desânimo até na hora de caminhar até o banheiro. E por fim, a ausência de cadeiras e mesas que eu possa usar para escrever. Todas as que existem aqui são terríveis e acabam com meu pescoço. Esse último problema acabei de resolver, pelo menos parcialmente. Saí catando cada uma das cadeiras do saguão e fui comparando todas elas para verificar a inclinação do encosto e ver qual delas tem um ângulo mais confortável pra mim. Frescura? Aparentemente sim. Mas o fato é que um ângulo ruim de acento me causa terríveis crises de dor de cabeça por causa dos ligamentos do pescoço que me deixam fora de combate por muito tempo. Até eu começar a cuidar do problema do acento e sofria com dores que me levavam ao hospital para tomar Tramal na veia. Hoje eu preciso fazer essa triagem de acento onde quer que eu trabalhe, o que sempre é motivo de procrastinação, mas que hoje eu venci. E fiquei tão feliz por ter encontrado uma cadeira que me causasse menos dor que ao sentar aqui pra testá-la que desimbestei a escrever e esqueci de arrumar as outras que trouxe aqui pro quarto.

Estou com saudades de escrever em meu diário físico. Meu caderno de papel de verdade. Ele tem essa imagem do Buda meditando embaixo da árvore sagrada que a Paula Cabral do Maturim Estúdio desenhou pra mim baseada na imagem do Keanu Reeves no filme do Bernardo Bertolucci. Não trouxe pra cá porque não queria estragar essa capa que é linda. Gostaria de registrar coisas mais íntimas, principalmente sobre meus sonhos e sobre como eles influenciam e têm sido influenciados pelas escolhas que fiz ultimamente no mundo desperto. Sinto mais falta ainda da Igor, minha máquina de escrever. Maior parte do que tenho registrado lá no diário são coisas datilografadas que depois vou lá e colo.

Estou me sentindo feliz, exatamente neste momento, mesmo com dores nas costas e no corpo. Mesmo não estando escrevendo alguma história, mas apenas registrando a minha história que provavelmente ninguém vai ler. Estar escrevendo o que quer que seja é um ato de felicidade e uma âncora de realidade. Estou de frente para a janela do alojamento e são 14h15 de um raríssimo dia de céu parcialmente nublado em Sobral, em que não está tanto calor e o sol não cai sobre seu corpo como as verdadeiras chamas do inferno. Lá fora vejo o enorme pátio por onde o VLT 06 acabou de sair em manobra e ao longe a Meruoca está encoberta por uma fina névoa que a torna quase irreal, apesar de gigantesca. Isso me lembra a imagem do cortejo fúnebre de Morpheus vislumbrado como uma premonição pelos confinados na taverna no arco Fim dos Mundos. Os confinados veem primeiro a Morte passando em lágrimas como um colosso quase translúcido, enorme e silenciosa. Depois os outros irmãos gigantes passam com o caixão. Lembro também do meu conto preferido da Virginia chamado “A Montanha”. A protagonista está de férias numa região montanhosa, acho que nos Alpes, em pleno inverno. Ela senta à varanda do lugar onde está hospedada e escreve uma carta para a irmã. Ali, enquanto escreve, sendo atravessada por lembranças de alegrias, culpas, arrependimentos e esperanças, ela também se deixa levar pelo trajeto de um grupo de alpinistas que vê ao longe as escalar a montanha cheia de neve. De alguma forma as figuras dos homens minúsculos desafiando a absurda magnitude da montanha a move em sua escrita e se estabelece como um paralelo de sua própria vida. É, portanto, por motivos óbvios que esse é meu conto favorito.

E há muito o que fazer. Vanessa ainda nem sabe que pretendo de verdade ir à frente com o infantil antes de terminar o romance. Foi por autossabotagem que não falei nada com ela sobre isso ainda. Porque eu precisava ter feito as alterações que Efigênia apontou na leitura crítica (que ainda nem paguei, mas a culpa não foi minha. Mesmo.), também ter considerado as observações que a Nat muito generosamente fez como minha segunda leitora beta. Depois disso eu precisava ter ido atrás de pelo menos mais duas leituras beta e só então ter colocado todo esse esforço prévio diante de Vanessa e dizer :”Ok, como minha mentora, preciso que me ajude começando por me dizer se esse livro é possível ou não e o que devo fazer agora.” Coloquei todas essas tarefas antes de ir à Vanessa. Porque eu sei que vai partir dela a maior parte das críticas e depois que elas tiverem sido corrigidas ou discutidas (ou talvez antes disso), vão partir dela os maiores desafios e pressões. E é isso que meu cerebrozinho está tentando evitar. Porque se este livro for mesmo viável, eu vou ter que tirar meu rabinho desta cadeira que demorei tanto para escolher entre tantas outras e vou precisar me mexer para que esse livro chegue à mão do maior número de pessoas possível. E isso vai doer. Isso vai cansar. E isso vai me revirar do avesso.  


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