Acordei cedo. Havia muito o que fazer, mas depois do café fiquei retido em porcarias no YouTube e só levantei da cama quando me convenci de que teria que viver numa casa desarrumada durante minha última semana em Fortaleza. Fiz a faxina rápido e almocei macarrão com salsicha na esperança de que a praticidade dessa escolha terrível me desse ânimo para escrever. Mas não deu. A TV me capturou de novo e muitos pensamentos desorganizados.
Só no fim da tarde sentei para tentar algo. Me sabotei encapando meu I-Ching. Ainda estou em dúvida se o levo ou não para Sobral e se levar, não quero que fique todo estragado. Mas estava mesmo me sabotando. E quando toda a sabotagem se exauriu, comecei a ficar ansioso. O calor e a noite chegando foram me deixando sufocado e se eu ficasse em casa iria começar a rachar até me espatifar em pedaços pelo chão. Deixei mensagem pra Juh informando meu possível trajeto (sempre faço isso com medo de que algo aconteça e ninguém saiba onde estou), desci, peguei a bicicleta e saí.
Já era tarde, quase 19h. Nunca saio pra pedalar aos domingos, muito menos tão tarde. Mas não tive escolha. Lá fora a noite estava completamente diferente do calor sufocante do meu quartinho. O vento dificultava meu avanço pela Domingos Olímpio, sentido Aguanambi. Poucos carros, poucas pessoas. Quase fui atropelado passando por um sinal vermelho com mil pensamentos sobre todos os aspectos solitários do meu dia.
Dei meia volta no sinal com a Dom Manuel. A partir dali a Antônio Sales é uma subida ingrata e minha bicicleta pré-histórica não tem marchas suficientes para me levar até a Praça da Imprensa sem um ataque cardíaco. Voltei pela Domingos a favor do vento. Lembrando de momentos com M., nos tempos em que eu tinha um carro que apelidamos de Kunta e fomos duas ou três vezes na casa dos amigos ricos dela e por um prodígio do destino eu me sentia pertencer entre eles. Quando cheguei à Bezerra, a luta contra essas lembranças já estava quase ganha. Segui no sentido North Shopping admirando a avenida quase deserta, poucas pessoas nas paradas de ônibus, tudo estava nu.
Passei do North Shopping e parei sobre o viaduto da Humberto Monte. De lá eu via a avenida iluminada abaixo de mim, mas me detive olhando o Habib´s cheio de famílias comendo. Eu estava sozinho entre os carros, olhando gente de longe, um movimento de domingo muito comum pra famílias de classe média. As crianças brincavam no parquinho. Fiquei com inveja. Queria estar com a Nena. Queria ter grana pra estar com ela e ficar ali, comendo esfirra enquanto ela se esbalda numa cama elástica feliz da vida. Fiquei olhando a cena por um bocado de tempo, num raro foda-se pro que pensassem de mim ali, stalkeando desconhecidos. Mas ninguém sequer me notou. As vantagens de ser invisível. Eu poderia escrever esse livro.
Um homem negro e magro em trajes de atletismo passou numa corrida lenta do outro lado da avenida e me trouxe de volta à realidade. Estava com fome e tinha muito o que fazer depois de mais um prato de macarrão com salsicha. Mas pelo menos a ansiedade tinha ido embora. Voltei Bezerra abaixo sem pressa apesar do estômago roncando. Tive inveja de novo quando vi um casal com sua filha adolescente caminhando distraídos pela calçada da Jacaúna. Tentei pedalar devagar pra acompanhar essa família e beber deles aquela calma idílica que eu tanto queria pra mim. Queria minha filha comigo caminhando num domingo à noite. Olhando a cena, não percebi um buraco e meu esforço por desviar fez meu guidão entortar. Tive de parar para arrumar o troço e perdi de vista a família. Voltei pra casa sem paradas desta vez.
Do momento em que cheguei até Nena ligar o tempo passou voando. Falei com ela sentado aqui de frente pro notebook. Ela estava feliz e eu fiquei feliz também. Vimos vídeos de dinossauros juntos. Cada vez que eu dizia que era o último ela fazia biquinho e aqueles olhinhos brilhantes de dengo que eu não resisto. Vimos muitas cenas de Jurassic Park e um monte de vídeos sobre seu amado Megalodonte.
N. havia mandado mensagens antes de Nena ligar. Falei que depois que terminasse gostaria de conversar um pouco com ela, mas quando terminei ela já não estava mais on-line.
Antes de iniciar este diário fui ler uns textos do meu antigo blog (Domo Solar). Para minha surpresa havia um comentário da Myllis do ano passado. Dizia que estava com saudade de escrever, que não tinha mais seus próprios blogs e voltou ao meu para tentar se reconectar com uma parte dela que ficou registrada em nossas conversas. Que incrível coincidência eu ter revisitado o Domo e encontrar esse comentário perdido. Ela mesma expressou sua zero esperança de que eu visse esse comentário, já que a última vez que postei algum texto nele tem quase quatro anos. Mas eu vi. E fui responder a ela em seu Insta. Espero que não demore quase um ano pra que ela veja. E espero que sua tentativa de reconecção funcione.
Depois de todas essas horas relendo textos meus de mais de dez anos atrás, sentei aqui e finalmente inaugurei meu diário de registro. Eu sempre releio aqueles textos. Tentando depurar o melhor de mim que veio até aqui e resgatar o melhor de mim que ficou retido nas palavras antigas. Hoje me surpreendi ao perceber que há muitos comentários naqueles textos. Algumas pessoas conhecidas e presentes até hoje, meus amores perenes como Juh e Sue. Outras que já não estão na minha vida como o Carlos Alberto. E alguns de pessoas que eu nem sei quem são. Mas aqueles comentários são...são exatamente o que eu quero. São a essência da minha vontade de tocar as pessoas com o que eu escrevo. E o engraçado é que na época em que eu escrevia naquele blog eu não percebia que era aquilo que eu buscava com aqueles textos. E fiquei feliz em ver que apesar de terem sido poucos os meus leitores fiéis eu os tocava.
Agora estou cansado e com fome de novo. Sei que vou ter uma manhã improdutiva porque tem muita roupa pra lavar e já preciso ir organizando as coisas para a viagem. Falei no Insta que participaria do desafio de escrita proposto pela Vanessa, mas isso foi há dois dias e ainda me vejo consumido pelas coisas que me impediram de escrever hoje. Não toquei no romance. Poderia considerar que este domingo foi uma batalha perdida. Mas só por não ter me deixado quebrar pela ansiedade e ainda estar inteiro e por ter revisitado uma escrita do passado, por Myllis também ter feito isso...acho que não foi uma batalha perdida.
Na verdade, estou excluindo a analogia de guerra deste diário.
Talvez eu não me reconecte com a Myllis do passado que se colocava a escrever e, como dizes, depurar algo de si. Mas também não sou mais a Myllis-do-ano-passado. E assim é o presente. Entre surtadas e dias ruins, entre dias bons que às vezes nossa autosabotagem não nos faz recordar, vamos indo. Nos teus textos vejo um pouco do que vejo na vida: somos sempre uma construção não acabada. Mas se acabasse, o que teria de interessante?
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